Livre criação a partir da obra O Castelo, de Franz Kafka, o espetáculo acontece no interior e na fachada de um prédio comercial envidraçado. As cenas se desenrolam em estreitos balancins de construção dispostos diante da fachada, onde os atores atuam pendurados por cordas de segurança. O público, imóvel do lado de dentro do prédio, assiste à encenação através da janela: incapacitado de tomar parte da ação, contempla o seu desenrolar de maneira passiva. Sua imobilidade aproxima os espectadores da perspectiva dos personagens de Kafka, que, incapazes de interferir de maneira efetiva na realidade que os rodeia, assistem a seu próprio destino ser decidido às suas costas.Nesses escritórios suspensos que observamos através dos vidros, personagens aferram-se de maneira obsessiva a seu trabalho, num temor paranóico de tornarem-se descartáveis. Figuras que, não por acaso, se assemelham muito aos sujeitos contemporâneos, habitantes de um mundo regido por lemas obsoletos: enquanto a revolução microeletrônica faz com que a produção de riqueza desvincule-se cada vez mais do uso de força de trabalho humano, o trabalho, cada vez mais escasso, continua a ser progressivamente enaltecido.
Outro aspecto contraditório intrínseco ao lema do trabalho já havia sido anunciado por Kafka: a tensão paradoxal entre a idéia de um trabalho que dignifica o homem e a ocupação desgastante e sem sentido, fundamentalmente inútil, que nos subjuga com a promessa ilusória de nos assegurar um lugar no mundo. Para além das mesas de escritório, o trabalho atua sobre essas figuras até mesmo nos poros do cotidiano, nos íntimos da psique, determinando seu pensar e agir, a maneira pela qual gerenciam seus corpos. Os espaços pelas quais circulam carecem de delimitação, a vida privada não se diferencia da vida pública, o espaço do trabalho se mescla com o espaço da casa. Dispositivos de poder oblíquos, invisíveis, mas tão fortes quanto as cordas que mantêm os atores suspensos, submetem as personagens de tal maneira que seus objetivos pessoais passam a coincidir com os objetivos estruturais do sistema: seu referencial simbólico de existência é ajustado ao universo de valores requeridos pelos modelos institucionais nos quais se encontram inseridos.
Acima de tudo, as personagens lutam para entrar no Castelo, fazer parte dele, num desejo utópico de encontrar alguma espécie segurança num mundo instável, sem perceber que sua agitação frenética é apenas aparência de movimento. Mais ou menos bem-sucedidas, encontram-se todas igualmente exiladas atrás dos vidros, lutando, em vão, para superar sua desorientação e encontrar um percurso definido. Incapazes de realizar seus desejos, deixam que sua vontade seja consumida em contínuos rodeios: seus propósitos são sempre detidos nas imediações, nas medidas preliminares. Mesmo quando suas aspirações se realizam, isso se dá de modo absurdo, já que são deformadas por um poder invisível e silencioso que atua sobre elas de maneira inexorável.
O castelo, como na obra de Kafka, é uma instância de poder que nunca se manifesta de modo explícito: impossível confrontá-la diretamente, seja em uma relação de oposição ou de adesão. Todo gesto de revolta parece de antemão neutralizado, destinado ao fracasso, fadado a esmorecer numa luta sem inimigo identificável, sem campo de batalha determinado. Dissuadidos de lutar contra um inimigo incorpóreo, os personagens passam a duelar consigo mesmos, tornando-se exilados em seus próprios corpos, encarando-se como os únicos responsáveis pela sua insatisfação e pelo seu fracasso. Numa insegurança constante, controlam a si mesmos e vigiam os demais, motivados por um temor contínuo de inadequação. Temem perder o emprego, temem não ser amados, temem não obter os resultados esperados - e temem, sobretudo, tornar-se párias, indivíduos supérfluos a ser atirados ao aterro sanitário social.
FICHA TÉCNICA
Texto Evaldo Mocarzel
Direção Eliana Monteiro
Apoio artístico ao projeto Antônio Araújo
Atores
Bruna Freitag, Denise Janoski, Luciana Schwinden, Luisa Nóbrega, Marçal Costa, Roberto Audio e Pardal
Desenho de luz Guilherme Bonfanti
Direção de arte Marcos Pedroso
Roupa de cena – Figurino Simone Mina
Criação e Direção Musical Amilcar Farina
Desenho de som Kako Guirardo
Assistente de direção Maria Emilia Faganello
Dramaturgia 1ª fase Sergio Pires
Estágiários de iluminação Grissel Piguillem, Rafael Presto e Vania Medeiros.
Montagem de luz RP Lighthing
Assistente de direção de arte Marghe Pennacchi
Estagiárias de direção de arte Julia da Luz Saldanha e Amanda Antunes
Preparação técnica aérea Monica Alla
Assistente de figurino Patricia Brito
Costureira Adelina Gomes
Assistência de Som Miguel Caldas
Operador de Microfones Gabriel
Contra Regra Victor Fonseca
Músicos Acordeon - Lucas Vargas
Live eletronics e programação Mica Farina
Concepção Audiovisual Lea van Steen e Evaldo Mocarzel
Direção de Fotografia Cleisson Vidal
Montagem Lea van Steen
Operação de vídeo Grissel Piguillem
Fotógrafos Nelson Kao e Angelo Lorenzetti
Design Gráfico Vânia Medeiros
Secretária Luisa Pereira
Assistente de Produção (permutas) Denise Janoski
Produção Executiva Maria Fernanda Coelho
Direção de Produção Teatro da Vertigem e Henrique Mariano
Idealização Teatro da Vertigem